A necessária ponderação nas regras de importações indiretas

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As operações de comércio exterior têm sido um campo fértil para atuação da fiscalização tributária sendo diversos os elementos motivadores de tais autuações, tais como: erro de classificação fiscal, ausência de licenças nos casos de licenciamento não-automático, irregularidades no aproveitamento de benefícios decorrentes de regimes especiais aduaneiros (drawback, entreposto aduaneiro, etc.), entre outros.

De igual maneira, a representação para fins penais tem se constituído em um elemento comum em grande parte das autuações decorrentes de operações de comércio exterior, o que certamente eleva o grau de preocupações e desafios dos operadores no comércio exterior a atenderem os rígidos parâmetros legislativos que eventualmente podem ser aplicados em tais operações.

Como não poderia deixar de ser, a aplicação das regras relativas às operações de importação “indiretas”, quais sejam, a importação por encomenda e a importação por conta e ordem, são objeto de escrutínio rigoroso por parte da Fiscalização, não sendo raras as autuações decorrentes de “reclassificação” de importações realizadas de forma “direta” ou “por conta própria”, ensejando a autuação para aplicação da pena de perdimento ou, quando não mais possível a apreensão do bem importado, a lavratura de auto de infração para cobrança de multa em percentual de cem por cento do valor aduaneiro da mercadoria.

Três são as possíveis modalidade de importação de mercadorias, a saber:

(i) importação direta ou por conta própria, que ocorre quando a empresa adquire as mercadorias no mercado internacional com recursos próprios e é responsável pelos procedimentos de despacho aduaneiro;

(ii) importação por conta e ordem, prevista no art. 80, I da MP nº 2.158-35/2001 e atualmente regulamentada no artigo 2º da IN/RFB nº 1.861/2018, em que a empresa importadora presta serviços e promove em seu nome o despacho aduaneiro de importação em favor de adquirente terceiro, sendo este adquirente o importador de fato e responsável pela operação mercantil de aquisição de mercadorias no exterior; ou

(iii) importação por encomenda, prevista no art. 11 da Lei nº 11.281/2006 e regulamentada no artigo 3º da IN/RFB nº 1.861/2018, em que o importador utiliza recursos próprios e é o próprio responsável pelo despacho aduaneiro de importação de mercadoria que será revendida a um encomendante predeterminado.

No que tange às importações indiretas, sabido é que durante o despacho aduaneiro deverão constar informações relativas ao adquirente ou encomendante, de modo a tornar possível à Fiscalização a identificação de todos os agentes envolvidos na operação, inclusive em função da responsabilidade tributária solidária em relação aos tributos aduaneiros que é imposta ao adquirente ou encomendante. De igual maneira, tal identificação auxilia no controle da incidência do IPI na eventual revenda de tais mercadorias por parte dos adquirentes ou encomendantes.

Ocorre que, infelizmente, pela amplitude dos textos relativos às regras de importação por conta ordem e encomenda, por vezes operações comumente tratadas pelos Contribuinte como sendo importações por conta própria podem vir a ser consideradas importações indiretas. Isso porque a legislação acima citada não trata de fazer quaisquer considerações no que tange às especificidades de operações comerciais, especialmente naquelas em que o “adquirente final” sequer tem ciência se a mercadoria adquirida é importada ou não (o que pode acontecer em casos de venda não-presencial), assim como não faz qualquer ressalva quanto à presença de dolo por parte do importador de “ocultar” o alegado “real importador”.

Destarte, dada a amplitude dos textos que tratam das modalidades de importação por encomenda ou conta e ordem, virtualmente todas as operações de importação por conta própria em que a Fiscalização venha a identificar um eventual direcionamento da mercadoria importada poderiam vir a ser reclassificadas como indiretas, situação esta que certamente não foi o objeto do legislador quando da edição de tal legislação.

O acórdão que hoje analisamos neste espaço trata justamente deste controvertido tema relativo à “reclassificação” da modalidade de importação adotada pelo contribuinte, reclassificação esta decorrente de uma, ao nosso ver, enviesada interpretação das regras relativas às operações de importação indiretas.

Com efeito, em acórdão proferido à unanimidade por turma ordinária da Terceira Seção do CARF, foi mantida decisão da Delegacia Regional de Julgamento – DRJ, que, com percuciência, tratou de afastar a cobrança de multa substitutiva da pena de perdimento em face da reclassificação de uma importação realizada pela modalidade “direta” pelo Contribuinte, em “indireta”, ou seja, por conta e ordem ou encomenda, por entender que a mera “expectativa de demanda, com o consequente repasse direto ou imediato das mercadorias por ocasião de sua nacionalização, sem que tal prática lhe descaracterize a realização das importações por conta própria” (Acórdão nº 3301-003.630).

Vamos aos fatos e à análise das razões consignadas no referido acórdão.

Conforme exposto no relatório constante do acórdão, empresa comercial exportadora teve lavrado contra si auto de infração para “aplicação da penalidade de perdimento de mercadoria, convertida em pecúnia em face da impossibilidade de sua apreensão em sede de operações realizadas por conta própria”. No caso, considerou a Fiscalização a ocorrência de situação classificada como “interposição fraudulenta com vistas à ocultação do real interveniente”.

Alcançada tal conclusão, descaracterizada foi a operação de importação por conta própria para uma operação de importação por conta e ordem, tendo sido o auto de infração lavrado não apenas contra o importador das mercadorias, mas também contra aquele que a Fiscalização identificou como sendo o seu real adquirente, em face da sua condição de responsável solidário nos termos do art. 32, §único, inciso III do Decreto-Lei nº 37/66.

A fim de justificar a autuação, elencou a Fiscalização os seguintes indícios: (i) ingresso de valores no caixa da importadora a título de “adiantamento de clientes”, o que, no entendimento da Fiscalização, suportaria a alegação de que as importações teriam sido feitas com recursos de terceiros; (ii) a emissão de notas de entrada e saídas de mercadorias na mesma data, o que demonstraria que tais mercadorias não eram objeto de armazenamento posterior ao desembaraço; e (iii) a constatação que o Contribuinte importador teria recebido “ao menos uma parcela do valor das mercadorias importadas, demonstrando que estava operando no comércio exterior por conta e ordem de terceiros”.

Em suas razões de impugnação, o Contribuinte sustentou que o recebimento de valores adiantado pela pessoa jurídica a qual as mercadorias importadas foram revendidas não poderia, por si só, ser considerado como suficiente à descaracterização de uma importação por conta própria, na medida em que é “extremamente comum no comércio exterior o fornecimento de arras ou sinal, na forma dos artigos 417 a 420 do Código Civil, como forma de garantia da realização do negócio jurídico”.

Ademais, a fim de contrapor a aplicação da regra de presunção prevista no art. 27 da Lei nº 10.637/02, a qual estabelece que se presume ocorrida a operação de importação por conta e ordem quando utilizados recursos de terceiros, o Contribuinte sustentou que tal presunção é “relativa”, de modo que quando ausente qualquer demonstração efetiva de dolo na operação tida como “interposição fraudulenta” pelo Fisco, não haveria que se tratar da aplicação de tal regra, ainda mais quando verificado que parte dos “adiantamentos” foram recebidos quando a mercadoria já se encontrava em território brasileiro.

No caso, considerando que a Contribuinte demonstrou a efetiva capacidade financeira de realizar por conta próprias as operações de importação questionada, qualquer alegação ou presunção de que haveria a necessidade de adiantamento de recursos deveria ser desconsiderada, na medida em que eventual adiantamento seria decorrente apenas de mero ajuste comercial entre as partes, mas nunca com o intuito de se mascarar e evitar a incidência das regras de uma importação por conta de ordem de terceiros.

Ainda, destacou o Contribuinte a existência de “margem de lucro no valor de revenda das mercadorias importadas”, o que indicaria ainda mais a ausência de qualquer intenção de se promover a operação por conta e ordem, pois nesta modalidade de importação o importador é mero prestador de serviços, não havendo efetivamente uma operação de compra e venda entre o importador e o adquirente da mercadoria.

Pontuou, ademais, que as mercadorias objeto das operações de importação questionadas não foram compradas exclusivamente para a empresa indicada como responsável solidária, mas também revendidas a outras empresas terceiras, o que afastaria a alegação de tentativa de ocultação daquela empresa em específico nos procedimentos de importação.

Por fim, ressaltou o Contribuinte que a operação não trouxe qualquer prejuízo ao Fisco, na medida em que todos os tributos incidentes na operação foram devidamente recolhidos, não havendo que se falar em dolo e, assim, indevida seria a penalidade de perdimento ou, como no caso em concreto, da multa que lhe substitui.

Ou seja, verifica-se que de maneira muito adequada tratou o Contribuinte de trazer elementos que dessem contornos mais realísticos à legislação em torno da legislação aplicável às importações por conta e ordem e encomenda. Com efeito, não houve negativa veemente de que as mercadorias importadas tinham alguns destinatários específicos, mas por outro lado demonstrou que aqueles adquirentes nunca procuraram o Contribuinte para que este importasse a mercadorias em seu favor, mas apenas que lhes fornecessem mercadorias, independentemente da sua origem. Assim, tratou de demonstrar o Contribuinte a ausência de qualquer intenção (dolo) de violação à legislação tributária-aduaneira, elemento subjetivo este que se encontra totalmente à margem no caso de uma aplicação pura e simples dos comandos previstos na Lei 11.281/2006, art. 80 da MP 2.158-35/2001 e na atual IN/RFB nº 1.861/2018 (embora o caso aqui debatido, ressalte-se, tenha sido analisado sob a égide das instruções normativas que precederam a IN/RFB nº 1.861/2018).

A esse respeito, entendemos que acertado foi o acórdão proferido pelo CARF ao acolher as razões do Contribuinte para o fim de anular a autuação lançada, pois, conforme se verifica a seguir, conseguiu identificar os excessos incorridos pela Fiscalização no que tange à aplicação da legislação ao caso concreto, especialmente por ter aplicado de forma indevida a regra de presunção constante do art. 27 da Lei nº 10.637/02.

Neste aspecto, merecem destaque as bem lançadas razões expostas no voto condutor do acórdão que, afirmando o caráter relativo da presunção prevista no art. 27 da Lei nº 10.637/2002, considerou que as presunções legais “não são propriamente meios de prova, mas somente meios lógicos ou mentais da descoberta de fatos, firmando-se mediante regras de experiência apreciadas pelo senso comum, legitimadas por expressa disposição legal”. Seguindo esta linha, o Conselheiro-relator esclareceu que o mero “sinal (ou arras), como forma de garantir o negócio contratado é prática comum na realidade dos negócios e devidamente prevista nos arts. 417 a 420 do Código Civil”, razão pela qual tal fato ser interpretado como “uma conduta delitiva no ordenamento fiscal” mostrava-se equivocado.

Vale dizer, entretanto, que o Conselheiro-relator bem observou que a regra presuntiva em questão se mostra válida quando constatado que o importador não teria capacidade financeira para realizar a operação de importação questionada pelo Fisco, situação esta que não se mostrava presente.

De igual maneira, o Conselheiro-relator também tratou de afastar a alegação de que o “repasse imediato” das mercadorias fosse um indício de uma operação de importação indireta, pois é “perfeitamente lício, dentro do espectro de gestão empresarial da empresa importadora, a realização de suas importações mediante prévia encomenda ou expectativa de demanda, como o consequente repasse direto ou imediato das mercadorias por ocasião de sua nacionalização, sem que tal prática lhe descaracterize a realização das importações por conta própria”.

Neste ponto, em seu voto o Conselheiro-relator fez interessante reflexão a fim de afastar a regra de “tudo ou nada” que a Fiscalização tenta impor ao analisar as operações de importação, qual seja, se há encomenda prévia ou acordo similar, automaticamente estar-se-ia diante de uma operação de importação sob encomenda ou por conta e ordem. A fim de afastar esse binômio fato-consequência, lembrou o relator que “um contrato por encomenda (objeto da importação em tal modalidade) nada mais é que um contrato de compra e venda para entrega futura, sendo que a importação constitui mero meio físico de obtenção de mercadorias transacionadas, concepção que abrangeria em tal modalidade qualquer importação realizada sob prévia encomenda, independentemente de qualquer outra condição, com a consequente sujeição passiva do adquirente das mercadorias aos impostos e infrações incidentes em sua importação”.

Ademais, de modo a eliminar quaisquer dúvidas quando à improcedência da autuação que desconsiderou ter sido a operação questionada ter sido realizado na modalidade d conta própria, no que tange à ausência de qualquer dolo por parte do Contribuinte, destacou o Conselheiro-relator que não houve demonstração da efetiva utilização na importação dos recursos adiantados pelo adquirente final, razão pela qual, até mesmo pela clareza com que o Contribuinte apresentou a operação em sua impugnação, não “restou demonstrado, mesmo que de forma indireta (…), a ocorrência de fraude ou simulação com vistas à ocultação da sujeição passiva, elemento indispensável à subsunção da conduta descrita ao tipo infracional autuado”.

Com efeito, na exata medida em que colocado pelo Conselheiro-relator, há de se interpretar as regras de importação por encomenda ou por conta de ordem de acordo com contexto em que foram criadas, ou seja, para o fim de combater o planejamento tributário abusivo oferecido por algumas trading companies com o objetivo de “quebrar” a cadeia do IPI quando da revenda das mercadorias importadas a varejistas ou atacadistas, o que certamente não se mostrava presente ao caso em tela. Ao não proceder uma análise ponderada sobre operações de comércio exterior, está a Fiscalização trazendo uma enorme insegurança ao mercado, pois cada vez mais as operações de comércio exterior estarão adaptadas ao conceito de “just in time”. Assim, situações de importações a partir de um pedido ou expectativa de pedidos são cada vez mais presentes, de modo práticas como “remessa imediatas após desembaraço”, “adiantamentos parciais”, mesmo em operações de pequeno porte, tendem a se mostrar mais frequentes, mas tais fatos não podem por si só serem encaradas como fundamentos para descaracterização de uma importação realizada na modalidade de conta própria.

Por fim, gostaríamos de destacar que o acórdão aqui comentado trouxe importantes luzes a respeito da devida interpretação a ser dada aos comandos legais e infralegais atinentes às operações de importação, especialmente no que tange à necessária análise em relação aos conceitos de dolo e prejuízo ao Fisco, ou seja, interpretou com a devida ponderação os preceitos legais em discussão.

Em um mundo em que as transações ocorrem de forma cada vez mais rápidas, não é concebível que situações como a constatação de “ausência de armazenagem” ou mesmo “garantia de recursos”, possam ser interpretadas como indicativas de uma tentativa de violação às regras de comércio exterior e tributos aduaneiros, merecendo o acórdão aqui apresentado o devido destaque pela excelente reflexão sobre as razões e provas apresentadas pelo Contribuinte que levaram ao afastamento da presunção de fraude sustentada pela Fiscalização.

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